Loucura, mijo e cigarro

Urros enraivecidos jorravam pela boca, uma mão tapava cada orelha. A posição: cócoras, no meio da rua sem saída. Cabelos presos num displicente rabo de cavalo, calças largas azuis e um quimono traspassado magenta de linho. Nos pés, sapatilhas verdes de couro metalizado com furinhos triangulares acima dos dedos. Verde mosca-varejeira.

– Eu não sou louca! Não sou louca! Se vocês me deixarem aqui eu vou morrer!

À minha direita, pai e irmão, assombrados e calados. À esquerda, minha mãe com lágrimas nos olhos de espanto, e o portão da clausura psiquiátrica. De braços cruzados, a médica e dois homens grandes com porte de segurança, vestidos de forma idêntica: camisas polo brancas, calças e sapatos pretos. Mais adiante, uma faxineira uniformizada. Seus cabelos eram crespos e tintos, com raízes muito brancas. A pele, mesmo de longe, cheirava a fumo; ela tragava, feito trem a vapor, um cigarro barato, de marca falsificada, paraguaia, que logo seria filado por mim, na maior cara-de- pau.

Entrei quase marchando, muito a contragosto, e perguntando, consternada, se naquele buraco aplicavam injeções letais e se matavam pessoas. Intuía que injetariam algum líquido em mim e que não poderia confiar neles: seriam meus carcereiros, me matariam. Mesmo assim, acatei os pedidos da minha família, e, xingando, acompanhei os dois brutamontes para dentro de uma sala. Na sala vizinha, vários papéis seriam assinados. Nenhum deles por mim.

Dali, só para mais fundo do poço: fui levada para um quarto em um declive do terreno, com grades verdes de metal retorcido nas janelas, um colchão no chão, e piso revestido de placas de borracha roxa, como as que vemos em academias de ginástica. Placas de encaixe, como as de quebra-cabeças. Nas paredes, alguns rabiscos feitos com algum objeto pontiagudo e manchas amareladas de sujeira antiga.

Cheirava muito mal.

Eu, com minha hipersensibilidade adicionada à falta de educação naquela hora, deixei claro, aos berros:

– Isto aqui cheira a mijo. Esta merda precisa ser limpa neste instante!

E foi. Pela servente que cheirava a cigarros. Tabaco, urina e desespero.

Aquele lugar era chamado de remoção: local de contenção dos pacientes que chegavam em estados de descontrole, drogados, alcoólatras, viciados violentos, ou daqueles que já estavam na clínica e que, por razões de mau comportamento, precisavam refletir no isolamento e sofrer uma penalidade.

Por uma semana e meia dormi, acordei, olhei para o teto, para as paredes, fiz minhas refeições sentada no chão com garfinhos de plástico e canecas infantis cheias de sucos enjoativos e açucarados, fui sedada por inúmeros remédios e líquidos em seringas e chorei. E chorei.

Estava dentro de uma cela – uma prisão – na qual meus próprios pais haviam me colocado, sem razão aparente ou qualquer explicação plausível. Por que estaria sendo punida? Cometera algum crime do qual nem sequer me lembrava?

Sentia-me como o mais miserável prisioneiro: reduzido a bicho enjaulado, impotente e emputecido com o mundo lá fora. Era igual ao bandido do mais baixo escalão, ao traficante assassino, quem sabe ao psicopata fã de sádicas torturas, ao estuprador inescrupuloso de crianças. Deixava de ser dona de meu corpo, de meus pensamentos e de minhas vontades. Entendia que todos me consideravam, naquele momento, completamente maluca, merecedora da pena, mas não de pena.

Justo eu, que justa sempre tentei ser, agora me via ali, sozinha, cercada por dúvidas, solidão, ira e terror.

E por três longos meses, um natal infame e um ano novo deprimente, não recebi nenhuma notícia de fora. Nenhum telefonema. Nenhum bilhete. Carta alguma. Apenas o silêncio punitivo.

Pelo que soube mais tarde, já que quase tudo se apagou da memória, talvez pelas medicações, pelas sinapses aleatórias, ou pelo trauma do surto em si, xinguei, gritei, e cuspi em cada um dos psicólogos que me prestaram visitas. Minha ira catarrenta era direcionada apenas aos psicólogos. Nunca ao pessoal da enfermagem ou da faxina.

Parece que eu também fazia supostas posições de yoga e mudras, gestos de mãos e dedos usados no Hinduísmo e também no Budismo. Algumas dessas posições são usadas para auxiliar o indivíduo na ruptura do ciclo de morte e renascimento. Antecipava ali o meu primeiro falecimento: desmoronamento das defesas, da confiança, das máscaras e do autocontrole.  Diagnóstico errado.

Três mortes totalizadas até meus 33 anos, chamadas de episódios psicóticos.