Pão, no sul, é cacete

Um dia antes de ser internada, pisoteei um pãozinho francês na sala de casa, com a agilidade de Fred Astaire. Sapateei mesmo. Sem alegria alguma, sem os lúdicos pingos de chuva ou poças divertidas: só com a alegoria religiosa da partilha do pão. Tinha tanto desespero na alma, que martelava pelos calcanhares a revolta de saber que nenhuma voz, nenhuma luz divina apareceria para me salvar naquele momento obscuro. Eu mesma era o diabo que amassou o pão. Deus, aquele velho safado e preguiçoso, faltou ao meu encontro quando mais supliquei e mais precisei. Ele me negava e eu negava esse Deus morto da mentira, fabricado para os fracassados, pobres e aos podres de espírito que pedem absolvição por seus pecados diários com suas preces furadas e doações calculadas.

Das amigas, a mais santa, exemplo de boa moça da roda endinheirada paulistana, assídua frequentadora de missas dominicais, com seus terços e relicários caros espalhados pela casa era o exemplo da hipocrisia crucifixa. Com sua sedutora voz infantil, devorou muitos homens com salivante sagacidade brutal, fingindo-se de Virgem Maria. Pecava pela gula, engolindo-os todos. Promiscuamente metia e mentia.

Numa das vezes, foi para Dubai passar mais uma semana de pré-lua-de-mel de noivado. Terceiro noivo?

O hotel, caríssimo, moderníssimo, muito clean e high tech: muitas estrelas, mobília reta, lençois claros com milhares de fios de seda, muitas claraboias na suíte presidencial, vista panorâmica, muitos espelhos enormes num oceano de dinheiro.

No spa de luxo – mais parecido com uma estufa de plantas, exuberante na amostra de vigorosas palmeiras tropicais –, gozava, sem ressentimentos, com gemidos bem ensaiados, ao ser dedilhada pelo massagista indiano de plantão. Religiosamente deitava-se na maca, em preces diárias. Aaahhhhs e Oooommmhhhsss, num benza deus de levantar defunto.

O idiota do noivo, o espertalhão exportador de armas, aguardava, pacientemente, na salinha de espera enquanto seu par de cornos despontava na testa. Sem um pio.

Ela, santinha dos múltiplos paus ocos e voz de criança (o mais primário truque de manipulação feminina), também maquinava o crime perfeito para, uma vez aqui e outra lá, se passar por moça pura e intocada: selecionava um novo namorado (que invariavelmente se tornava um noivo), e o coitado, desavisado, era arrastado para a cama no seu último dia de menstruação. Premiava o orgulhoso sujeito com sua malandragem e fingia ter machucado o corpinho intocado com a sua mais recente aquisição. Com o sangue colado no suor dos lençóis, além de um ou dois pentelhos, mostrava, timidamente, a prova de sua virgindade e pureza.

A moçoila, tão católica, tão prestadora de caridades à Igreja, tão cativa dos primeiros bancos e convites exclusivos à sacristia do famoso padre cantor, em nenhum momento se arrependia do pecado. Pelo contrário: abria seu sorrisinho maroto, batia as pestanas de forma inocente, e abraçava um bichinho de pelúcia qualquer. Depois, com a alma lavada, perfumava-se com colônia de bebê, vestia seus vestidinhos floridos, rezava a missa de domingo com a bíblia nas mãos e joelhinhos dobrados. Comia o corpo de Jesus lentamente, derretendo-o pela língua em auto-absolvição.

Em Porto Alegre, um pároco também se ajoelha religiosamente para prestar penitência: em frente aos quadris de outros homens. Nada de novo. Ao menos esse aí não come criancinhas.

No nosso vizinho Paraguai, bispos-presidentes copulam e procriam com devotas de dezesseis anos. Aparecem por uns dias nos noticiários, aparecem uns filhos aqui e aparecem mais outros tantos acolá, mas não aparece sequer um sermão da Santa Sé, tão julgadora dos pecados alheios e tão divinamente blindada aos deslizes do seu clubinho.

No final das contas, pão, pau, virgens e madalenas são todas farinhas da mesma hóstia.

Tende piedade de nós.